Continuando o artigo da semana passada:
No caso da Dança Moderna, a referência da época, em termos formais, eram as várias linhas desenvolvidas pelo Ballet Clássico até então, que foram em si um longo processo de estruturação desde as cortes francesas do século 17 até o academicismo vigente naquele momento histórico tão particular. Traçando paralelos com o que ocorria no mundo e na sociedade naquele momento, a civilização ocidental passava pelo processo da Revolução Industrial, da implantação do sistema capitalista e de grandes conflitos deflagrados na Europa (o grande berço da cultura ocidental) como a Revolução Russa e mais adiante as duas grandes Guerras Mundiais. Num período de mudanças tão drásticas no estilo de vida da sociedade e, num espaço temporal relativamente curto em termos históricos, não é de surpreender que as expressões artísticas deste período sejam tão distintas, tão fortes, tão pungentes. O grande conflito interno do homem durante tempos tão conturbados não passou incólume pelas searas da Arte.
Através do processo de experimentação, os artistas deste período buscaram retratar e expressar toda a intensidade humanística daquele momento peculiar. Sim, o academicismo do Ballet Clássico foi, sem qualquer dúvida, a grande referência. E nessas circunstâncias, num primeiro momento, muito mais para ser rechaçado, pois o Ballet sempre representou uma dança de elite (oriunda das cortes), excludente e, em muitos aspectos, de caráter dogmático e até militarista. Citando uma frase de uma das mais importantes pioneiras da Dança Moderna, a célebre Isadora Duncan, quando em visita à uma escola de Ballet na Rússia em 1905: “todas as aluninhas de pé em fileiras. (…) Elas ficavam na ponta dos pés durante horas, como vítimas de uma cruel e desnecessária Inquisição. Os grandes salões de dança, vazios (…) eram como uma câmara de tortura.” Isadora ainda prosseguiu: “Em sua forma presente, o balé é incontestavelmente um legado do século 18. Com poucas exceções, (…) ele representa uma superação de dificuldades, um acrobatismo, um tipo de mecanismo complicado e torturante.” (Peter Kurth, pág. 182).
É lógico que num momento atual, posicionamentos radicais como esse podem parecer um tanto exagerados, por isso a importância da contextualização histórica. Naquele momento, foi exatamente a oposição e o repúdio à estrutura clássica acadêmica que acionou o impulso criativo para a experimentação e exploração de outras formas de comunicação através do movimento, que estivessem mais em sintonia com o âmago dos artistas e com a mensagem que necessitavam passar.
Na contemporaneidade, em que as escolas, referências e tendências se mesclam e se permeiam, somando-se num panorama múltiplo e versátil, é muito importante ter em perspectiva as aquisições qualitativas que cada expressão artística pode proporcionar. As técnica codificadas e acadêmicas, não apenas do Ballet Clássico, mas subsequentemente da Dança Moderna, que foram desenvolvidas ao longo do século 20, oferecem um acabamento sofisticado e de alto controle ao bailarino contemporâneo, alfabetizando seu corpo e tornando-o um verdadeiro instrumento expressivo. Portanto, o estudo dos fundamentos faz-se absolutamente necessário, pois apenas através de um instrumento afinado, por assim dizer, esse artista poderá, com clareza e precisão, transmitir e compartilhar seus anseios, questionamentos e visões para este novo século que se inicia.