Pioneiros no Brasil – Helenita Sá Earp

10 de abril de 2015

Continuação do artigo passado, sobre a trajetória de Helenita Sá Earp na história da Danço Moderna no Brasil.

Helenita então, além de suas alunas na ENEFD, dividia-se entre o curso de aperfeiçoamento do Teatro Municipal, um fato importante, por tratar-se de uma instituição de fortíssimo cunho clássico, o curso de teatro Martins Pena, onde trabalhava com a expressão corporal para atores e seu próprio estúdio particular, situado na zona sul do Rio de Janeiro. Naturalmente, para dar conta de todas essas intensas atividades, Helenita contou com o apoio fundamental de suas dedicadas discípulas, que, além de bailarinas do seu “Grupo de Vanguarda”, eram professoras e assistentes, como Glória Futuro, Myda Pacheco, Heidi Johnson e Lourdes Bastos. Esta última, que começou a dançar com Helenita na década de 1950, futuramente assumiria o lugar de sua mestra na cadeira de Dança Moderna do Teatro Municipal, criaria o seu próprio estúdio e companhia (“Studio Lourdes Bastos”), com trabalhos coreográficos reconhecidos no exterior, como “Mar Sem Fim”, “Viva Lorca”, entre outros.

Outro ponto alto da carreira de Helenita foi durante o “Primeiro Encontro de Escolas de Dança do Brasil”, idealizado por Paschoal Carlos Magno e realizado em Curitiba, de 5 a 10 de setembro de 1962. Apresentando a coreografia “Ritmo, Forma, Cor”, arrebatou público e crítica do festival, que exaltou o trabalho:

           “Foi um espetáculo maravilhosamente bem entrosado, em que, ao lado da beleza de expressão, estava a precisão da execução, límpida, espirituosa, inteligente. O espetáculo do Grupo de Vanguarda teve vibração e encanto como nenhum outro, servido pelo trabalho e a inteligência de seus componentes.”  (Diário do Paraná, 09/09/1962)

            No festival, também foram apresentadas aulas públicas das diversas escolas presentes e, mais uma vez, Helenita e seu grupo foram ovacionados. Suas aulas e espetáculos, aliás, foram sempre um acontecimento à parte. Cercada de excelentes profissionais, como suas professoras assistentes, seus bem preparados bailarinos, seus técnicos em iluminação e fotografia, com destaque para o trabalho de Paulo Murilo Alves Iracema, e sua equipe musical, composta pela pianista Ítala Martins Moreira e a percussionista Dora Pinto, Helenita também foi pioneira no uso da percussão, ao lado do já conhecido piano, em todas as suas aulas, o que conferia um estímulo até então inédito para a prática da dança.

Talvez uma das maiores riquezas da trajetória de Helenita Sá Earp na Dança Moderna no Brasil tenha sido a elaboração de um sistema próprio de trabalho, sólido, codificado, o Sistema Universal da Dança (SUD), que tem como co-autoras as discípulas e também professoras da ENEFD, Glória Futuro Marcos Dias e Myda Maria Sala Pacheco. Durante anos, as três professoras discutiram e elaboram um sistema que abrangesse todas as possibilidades mecânico-motoras do movimento, pesquisando permanentemente conteúdos de anatomia, fisiologia, cinesiologia, biomecânica  e contando, inclusive, com o apoio dos professores catedráticos de tais disciplinas na Universidade do Brasil.

Um aspecto bastante interessante do sistema é a adoção de termos científicos e em português para a descriçãodos movimentos. Isto sem contar com a codificação de oito posições básicas, com suas respectivas possibilidades de amplitude, de acordo com as possibilidades mecânico-motoras da articulação coxo-femural. Por exemplo, para a primeira posição de pés, o sistema abrange quatro graus de amplitude: paralela, normal (posição anatômica-extensional), para dentro ou fechada (rotação interna) e para fora ou aberta (rotação externa). Segundo a professora Myda Maria Sala Pacheco, o uso de termos científicos, ao invés da nomenclatura convencional de dança oriunda do Ballet Clássico, em francês, foi uma escolha prática, no sentido de facilitar o entendimento da técnica e que acabou dando origem a um vocabulário próprio:

            “Que não é mais nada do que o uso dos termos científicos: flexão, extensão, rotação, elevação. Não precisa dizer ‘rélévé’, ‘rond de jambe’, ‘plié’, que é outra língua e que não quer dizer nada mais do que isso. Então, para pessoas que como nós, tinham estudado educação física, nada melhor do que esses termos, ficou mais compreensível.”

            De acordo com as duas colaboradoras de Helenita na criação do SUD, a falha principal de suas trajetórias foi não terem publicado um trabalho sobre os fundamentos do sistema de modo a legá-lo para as gerações futuras, salvo à algumas apostilas confeccionadas para o Departamento de Arte Corporal da ENEFD. Uma de suas discípulas, Hannelore Fahlbusch, em seu livro “Dança Moderna/Contemporânea” de 1990, homenageia sua mestra Helenita Sá Earp, além de tecer um bom panorama acerca dos fundamentos do Sistema Universal da Dança. Dionísia Nanni (“Dança Educação”, 1998), também foi outra aluna que citou a influência do SUD em seu trabalho.

Helenita, Glória e Myda deixaram de lecionar na Universidade do Brasil, que passou a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e hoje retomou o nome de Universidade do Brasil, na década de 1990. Em homenagem à grande mestra, a partir de 1996, o grupo de dança passou a se chamar “Cia de Dança Helenita Sá Earp/ UFRJ”, estando sob a direção artística da professora Ana Célia Sá Earp (filha de Helenita) desde 1986. A pioneira que influenciou tantas gerações de discípulos, numa trajetória acadêmica e artística de mais de sessenta anos, definitivamente constituiu um marco na Dança Moderna no Brasil e seu trabalho, um primoroso legado técnico codificado, precisa ser resgatado para enriquecer a formação do futuro da dança no país.

            “Dança é a capacidade de transformar qualquer movimento em Arte.”

                                                                                  (Helenita Sá Earp)

 

Não perca a continuação deste trabalho na próxima semana!






Andrea Raw
Bailarina, Professora, Coreógrafa e Pesquisadora em Dança. Dançou extensivamente em festivais por todo o país. Graduou-se no Bacharelado em Artes Cênicas pela UNIRIO e em Docência dos Ensinos Fundamental, Médio e Superior pela UCAM. Começou a lecionar em 1992, destacando-se no ensino da Dança Moderna no Ballet Stagium, em São Paulo, Petite Danse, Escola Marta Bastos e Centro de Movimento Deborah Colker, no Rio e no MMS em Budapest, na Hungria. Formada pela Martha Graham School em NY, foi idealizadora e produtora dos Workshops de Técnica e Repertório de Martha Graham no Centro Coreográfico do RJ em 2009 e 2010, além de Workshops com David Parsons em 2010 e Ana Marie Forsythe, da Ailey School em 2011 e 2012. Idealizadora, Produtora e Diretora Artística do Congresso Brasileiro de Dança Moderna, realizado anualmente a partir de 2011.

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1 Comentário

em 22 de January de 2016

Foi muito bom ter encontrado esse blog que dá os devidos créditos ao trabalho excepcional de Helenita Sá Earp. Nos legou o único sistema existente sobre a estrutura da Dança Moderna ( ela tinha muitos manuscritos, ainda inconclusos que, se encontrados podem ajudar na publicação tardia de seu trabalho). Além do mais, a leitura trouxe-me lembranças muito caras das apresentações na Aldeia de Arcozelo, de Paschoal Carlos Magno. Fiquei com gosto de quero mais.



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